Sobre o Colorismo e sentimento de não pertencimento
Começar a escrever sobre esse tema não foi fácil, durante semanas eu imaginei as coisas que eu
gostaria de colocar em um texto e compartilhar com as pessoas, pensei principalmente nos motivos pelos
quais eu queria fazer isso. Durante semanas eu dizia a mim mesma que não possuía conhecimento e o
embasamento teórico necessário para isso. Porém, assim como um dia eu abri um blog qualquer na internet e
me deparei com discussões e debates sobre negritude falando de uma maneira com a qual eu me
identifiquei, que despertaram em mim a curiosidade e a vontade de buscar cada vez mais conhecimento, hoje
eu espero que o meu texto também sirva para que outras pessoas busquem novas fontes de informação, que
ele crie aquela inquietação que faz com que a gente reflita e questione.
Vocês podem questionar qualquer coisa que eu diga nesse texto, mas não podem questionar ou negar
o fato de que o Brasil é um país extremamente Racista que discrimina, violenta e mata de todas as formas
possíveis a população negra, é justamente o racismo e a necessidade de que cada vez mais pessoas falem
sobre ele com uma abordagem antirracista que me motiva a escrever.
Eu sou professora da rede pública, trabalho com crianças e adolescentes, sei qual a importância do
meu papel social. Me identifico como mulher, bissexual, negra e periférica, esses são os meus marcadores sociais, as
pessoas reagem a isso de diversas maneiras, algumas reações são, para ser delicada “inusitadas”. Algumas
pessoas chegam a afirmar com tom de pena na voz que eu não sou negra, então eu questiono “Eu sou
branca?” a resposta vem prontamente e sem nenhuma excitação “Não, você não é branca!”, então eu ouço
aquele famoso “você é morena”, eu rebato perguntando “O que é ser morena?” e é nesse momento que as
pessoas ficam sem saber como responder. Tenho certeza que muitos dos que estão lendo esse texto agora, se
identificam com essa situação.
Em um dos artigos publicados no Geledés a autora fala sobre a ambiguidade do termo morena,
aprendemos na escola que morena é uma pessoa branca de cabelo preto, no cotidiano morena é um termo
utilizado para descrever mulheres negras de pele clara. Para além dessas duas utilizações eu ainda acrescento
que morena ou moreno é o termo utilizado para se referir a pessoas negras/pretas de uma maneira “não
ofensiva”, por que no Brasil dizer que alguém é negro ou preto chega a ser algo ruim. A minha mãe é uma
mulher negra da pele escura e a minha vida toda ouvi as pessoas se referirem a ela como morena, em
determinando momento eu passei a contrapor, “morena não, negra”, e as pessoas ficavam espantadas.
Ainda hoje algumas pessoas falam com orgulho sobre o Brasil ser um país miscigenado, um país
com uma grande diversidade étnica, a verdade é que essa miscigenação é resultado de séculos de extermínio
dos povos indígenas, que são os povos nativos do Brasil e estupro de nossas ancestrais, mulheres negras e
indígenas. Os negros que foram trazidos da África para o Brasil eram de pele retinta (tom de pele negra
escura), a palavra pardo, foi registrada pela primeira vez na história da escrita do Brasil para descrever os
indígenas, ambos os povos não eram considerados integrantes da população, eram considerados povos
selvagens, com valor apenas para a exploração já que não eram considerados seres humanos. Saltando para o
período pós-abolição, quando a miscigenação passou a ser incentivada. Era necessário embranquecer a
população que havia se tornado majoritariamente negra e dessa forma, feia e degenerada. Quando eu digo
que a miscigenação foi incentivada é por que existiram politicas públicas que visavam o melhoramento da
raça brasileira, ser negro era oficialmente considerado algo ruim, embranquecer a população e dessa forma
sufocar e apagar a história, cultura, traços africanos e indígenas, quanto mais distante disso melhor.
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Você já parou para analisar está obra? |
Sendo esse o primeiro texto que eu me proponho a escrever escolhi o tema Colorismo ou Pigmentocracia, esses não são termos criados no Brasil, mas são termos que nos ajudam a entender a situação, basicamente, quanto mais escura for a cor da pele e quanto mais traços físicos associados à descendência negra você tiver, mais discriminação e exclusão você sofre e o inverso também é verdadeiro. Ou seja, quanto mais branco melhor, reflexos das políticas de embranquecimento da população.
Eu sou filha de um casal interacial, como eu já disse aqui a minha mãe é negra de pele retinta e meu
pai é branco, na infância eu passei despercebida por muitas situações, mas eu conseguia perceber as diferenças entre a família do meu pai e a família da minha mãe. Um exemplo, na família da minha mãe, eu fui a primeira pessoa a passar em uma universidade pública e se formar, os meus primos e primas mais velhos estudaram até o ensino médio e a família não tinha condições financeiras de pagar uma faculdade particular, já na família do meu pai muitos dos meus tios e tias, primos e primas cursaram o nível superior em instituições privadas.
Eu e todas as mulheres da família da minha mãe passamos pelo alisamento do cabelo, para mim uma
tentativa de me sentir aceita, de me sentir bonita, ainda que como as pessoas diziam “o meu cabelo não fosse
tão ruim assim”. Durante quase dez anos eu alisei o cabelo, um dia recebi um elogio “você fica muito bonita
de cabelo alisado, parece aquelas negras americanas” essa frase ficou ecoando na minha cabeça por muito
tempo e foi a partir desse ponto que iniciou um debate dentro de mim sobre identidade racial. O processo de
transição capilar para pessoas negras não é apenas sobre estética, é sobre aceitação, é sobre você resgatar
muito mais do que seu cabelo natural, é sobre resgatar as suas origens e sua identidade, foi nesse processo
que eu consegui finalmente me perceber como mulher negra e não apenas por causa do meu cabelo, mas por
que nesse momento eu passei a questionar a construção social do que é ser negro no Brasil.
O slam “A menina que nasceu sem cor” é o grito que eu tenho preso no peito, em uma das falas a
artista diz “Porque me chamam por aí de parda, morena, moreninha, mestiça, mulata, café com leite, marrom
bombom”, uma vez eu fui chamada de “morena cor de jambo” (a fruta), na minha cabeça eu fiquei pensando,
mas jambo é rosa, como alguém pode ser morena cor de jambo? Eu me questionava o que eu sou? Preta
demais para ser branca e clara demais pra ser preta, e eu digo clara, por que de nenhuma ótica eu conseguia
me perceber como branca, nunca fui tratada como mulher branca. É angustiante e dolorido, é o sentimento de
não pertencer, de não se encaixar.
Quando a pauta é negritude, o meu local de fala é um “local de privilégio”, a negra de pele clara e
traços finos, aquela que é mais socialmente “tolerável” pela branquitude e que
consegue acessar determinados espaços. Mas não se deixe enganar, sempre que for conveniente a
branquitude racista vai jogar na sua cara que você é negro e vai tentar te colocar no lugar que eles ainda consideram
ser o local da população negra, sempre a margem. Ser a negra de pele clara também nos coloca no
estereótipo da “mulata” aquela é hipersexualizada e fetichizada, “da cor do pecado”. Quanto mais retinta for
uma mulher mais preterida ela vai ser, por que quanto mais próximo do padrão europeu de beleza mais
bonita você é considerada, ou seja, pele mais clara, traços finos, cabelo “não tão ruim assim”, mas de novo
não se engane, você é a “morena” boa pra se ter na cama, mas não boa o suficiente para ser vista em público
com alguém.
O objetivo desse texto é falar para pessoas que hoje se sentem como eu me senti um dia, pessoas que
se sentem não pertencentes, pessoas que ainda estão em crise com a identidade racial. Não existe um
negrometro, até por que existem mais de 70 tonalidades de pele negra, ninguém pode dizer se você é negro
ou não, mas você precisa parar de fugir da sua negritude e se aceitar. Isso é necessário para que possamos
escancarar o mito que é a democracia racial, não é por que pessoas como nós, negros de pele clara
conseguem acessar determinados espaços que o racismo deixou de existir, pelo contrario, se em
determinando ambiente você é a pessoa mais preta, é por que o acesso ali foi negado a outras pessoas por inúmeros motivos e isso deve ser questionado.
Mas por que é importante que você se reconheça como negro? Quando você passa a se perceber
como negro você passa a notar de outra maneira e a se incomodar com a desigualdade racial, quando você se
incomoda dificilmente você fica passivo diante de alguma situação, é dessa não passividade que nós
precisamos, precisamos que as pessoas fiquem incomodadas a ponto de quererem fazer algo para mudar a
situação.
As pessoas não podem, mas elas vão tentar te dizer se você é ou não é negro, algumas vezes você vai
ouvir isso de pessoas brancas, nesses casos se você estiver com paciência e o seu ouvinte aberto ao diálogo tente explicar, eu gosto de começar com um "Você poderia me explicar o seu ponto de vista?", porém se você não estiver com paciência, "Sorria e acene". Outras vezes você vai ouvir isso de pessoas negras de pele mais
escura que a sua, isso vai doer, vai te deixar chateado e até com raiva, mas antes de abrir a boca se lembre
que tudo pelo que você passou e sofreu aquela pessoa vivenciou em uma escala maior e ainda tem situações
do racismo que nós na nossa posição de privilégio desconhecemos completamente.
O racismo é tão bem
estruturado que ele consegue colocar negros uns contra os outros, mas nós não precisamos disso, precisamos
respeitar os locais de fala, precisamos de uma boa dose de bom senso, precisamos de união e consciência de
classe, partindo dai pretos no topo e fogo nos racistas!
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